Pronúncia sobre o despacho
da Câmara Municipal de Lisboa,
Dr. Duarte Cordeiro
Lisboa, Janeiro de 2016
Assunto: Pronúncia sobre o Projecto de Regulamento dos Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de Venda ao Público e de Prestação de Serviços no Concelho de Lisboa PUBLICADO em BM da CML a 3 DE DEZEMBRO 2015
De acordo com o disposto no art. 100.º e ss. do Código do Procedimento Administrativo, vem ________(coloque aqui o seu nome)______ pronunciar-se relativamente ao projecto de regulamento supra referido, nos seguintes termos:
A. DOS FUNDAMENTOS LEGAIS
O regulamento em apreço não pondera devidamente os direitos dos particulares, em particular dos que residem em zonas especialmente afectadas pela concentração de estabelecimentos de restauração e diversão nocturna.
Estes direitos estão consagrados no quadro jurídico Português através de um conjunto amplo de normas jurídicas: Constituição, Código Civil, Regulamento Geral de Ruído (que actualmente consta do Dec. Lei nº 9/07, de 17-1, que revogou o Dec. Lei nº 292/00, de 14-11), e outros diplomas avulsos que regem aspectos de ordem urbanística ou relacionados especificamente com a qualidade das construções, nomeadamente com o respectivo isolamento acústico.
Não pode duvidar-se que a actividade de diversão nocturna assim explorada acarreta uma lesão grave e continuada do direito de personalidade dos residentes e habitantes nas zonas identificadas, ocasionando dano substancial ao gozo e fruição de um mínimo de tranquilidade de repouso, de saúde, sono e qualidade de vida ambiente.
O projecto de regulamento em análise abre portas a possibilidades que normas jurídicas com força muito superior proíbem.
E a nossa lei fundamental concede uma maior protecção jurídica a estes direitos do que aos direitos de índole económica, social e cultural, havendo entre eles uma ordem decrescente de valoração.
Não se compreende assim uma manifesta tendência do projecto do regulamento em análise em impor um vector em direcção contrária.
Não é tolerável que o interesse no exercício ou exploração lucrativa de actividades de restauração, lúdicas ou de diversão se faça com o esmagamento dos direitos básicos de todos os cidadãos que tiverem o azar de ver na zona onde residem a instalação desses estabelecimentos, aniquilando, em termos claramente desproporcionados, o direito a gozar de um mínimo de tranquilidade, sossego e qualidade de vida no seu próprio domicílio.
A experiencia acumulada pelos moradores ao longo dos últimos 4 anos, em que foram testemunhas impotentes de uma enorme degradação das condições de habitabilidade da zona onde residem, permite-lhes agora afirmar com segurança que qualquer solução para este problema terá necessariamente de assentar na adopção de medidas particularmente restritivas quanto ao modo de funcionamento actual da actividade nocturna.
Os interesses dos estabelecimentos, em caso algum poderão prevalecer sobre a garantia constitucional dos residentes ao descanso e à saúde, sendo ainda muito flagrante o excesso porque se rege a actuação daqueles estabelecimentos e o generalizado incumprimento da lei do ruído e das normas urbanísticas aplicáveis.
Importa ainda QUE a CML tome em particular consideração o acervo muito importante de recomendações que têm sido adoptadas sobre o tema do ruído pelo Provedor de Justiça e, em particular o documento intitulado “BOAS PRÁTICAS NO CONTROLO MUNICIPAL DO RUÍDO CONCLUSÕES DO INQUÉRITO DO PROVEDOR DE JUSTIÇA, AOS MUNICÍPIOS 2012”.
Entendemos que o projecto de regulamento toma em consideração uma visão muito atenuada da realidade, apelidando de meras “incomodidades” o que é uma degradação gritante da qualidade de vida dos moradores e dos seus direitos constitucionalmente garantidos, com consequências gravíssimas para a sua saúde, a nível físico e psíquico.
C. PARTE DISPOSITIVA
Na sua nota justificativa à proposta de regulamento de horários de funcionamento dos estabelecimentos de venda ao público e de prestação de serviços no Concelho de Lisboa, a Câmara Municipal de Lisboa refere-se ao disposto no nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei 48/96 de 15 de maio, na redacção que lhe é dada pelo Decreto-Lei nº 10/2015 de 16 de janeiro, que estabelece que as câmaras municipais adaptem os seus regulamentos de horários de funcionamento à liberalização prevista naquele diploma ou que restrinjam os períodos de funcionamento dos estabelecimentos acima referidos.
A mesma nota explicativa refere ainda um conjunto de incomodidades causadas pelo ruído provocado pelo funcionamento de estabelecimentos, a aglomeração de consumidores no exterior dos mesmos, a exposição a fontes de ruído, a insegurança, etc. …»), concluindo que «por razões de segurança e protecção da qualidade de vida dos cidadãos, é necessário limitar, em determinados casos, o horário dos estabelecimentos….»
Não se percebe pois, que abrindo desta forma o seu projecto de regulamento, a CML imediatamente preveja um conjunto de “tipologias inovadoras”, “possibilidades de alargamentos pontuais de horários” e outras definições de exploração difíceis de averiguar, que irão inevitavelmente gerar as incomodidades que pretende evitar e impedir uma atuação fiscalizadora e contra-ordenacional rápida e dissuasora.
Refere igualmente a “possibilidade de alargamentos pontuais de horários para eventos específicos”. (O que entende a CML por “eventos específicos”? Estarão nesta categoria todos os festivais a que temos vindo a estar sujeitos, autocarros a circular com festas a bordo, concursos publicitários de marcas de bebidas alcoólicas, etc. e ocupando a via pública como se nada fosse?). Não define o que são as incomodidades? E como avaliará a CML a existência de “incomodidades”. Nada diz sobre os estabelecimentos de venda e de restauração não sedentários.
Ao permitir o funcionamento de estabelecimentos do Grupo I (que incluem estabelecimentos de restauração e de restauração e bebidas sem espaço de dança, designadamente cafés, cervejarias, casas de chá, restaurantes, snack-bars, self-services e similares, bem como os recintos fixos de espectáculos e de divertimentos públicos com título habilitante para o efeito e existem em praticamente todas as ruas da cidade de Lisboa e em grande número em algumas ruas) todos os dias da semana das 7h da manhã às 2h da manhã, a CML está a abrir a porta ao surgimento de focos de ruído e aglomerações susceptíveis de afectar o descanso dos moradores e ao aparecimento de mais queixas e mais problemas para os cidadãos.
Os horários dos estabelecimentos devem ser compatíveis com as horas de descanso dos cidadãos, que manifestamente não são as 2h da manhã (a lei do ruído estabelece que depois das 23h o que deve prevalecer é o silêncio!). As câmaras devem regular no sentido de se obter uma vivência equilibrada e sustentável para todos, e não o contrário.
Também a liberalização total dos horários na dita zona livre, onde os estabelecimentos não estarão sujeitos a qualquer limite de horário irá levar ao regresso das “after-hours”. Iremos ter estabelecimentos nas zonas residenciais abertos até às 2h/3h e outros até 4h, levando à movimentação das pessoas de umas zonas para as outras. Recorde-se que a medida de restrição de horários tomada em Janeiro de 2012, com o intuito de limitar o fenómeno das “after-hours” e o seu impacto negativo nos residentes e frequentadores diurnos das zonas abrangidas, teve efeitos imediatos e duradouros, ainda que circunscritos às primeiras horas da manhã, mas não eliminou de modo algum o problema, que continua até hoje incontrolado.
A indefinição quanto aos chamados “eventos para os quais uma autorização de alargamento de horários poderá ser emitida até 3 dias consecutivos e não mais do que 10 pedidos por ano”, irá dar origem a uma diversão nocturna contínua e permanente. Não haverá na prática nenhuma zona da cidade a salvo e onde o sossego e tranquilidade possam ser garantidos.
À luz do novo regulamento irão poder funcionar até às 4h da manhã todos os dias todos os estabelecimentos do Grupo III, (que inclui estabelecimentos de bebidas com espaço de dança que disponham de título habilitante para o efeito, designadamente clubes, cabarets, boîtes, dancings e similares, os recintos fixos de espectáculos sem título habilitante para o efeito e sejam reconhecidos como casas de fado), e ainda espaços sem espaço de dança mas que cumpram 8 requisitos. Como se propõe a CML fiscalizar o cumprimento destes 8 requisitos? Quantas queixas terão os moradores que apresentar até a CML atuar perante violações deste tipo? (actualmente, existem estabelecimentos sem espaço de dança e que não cumprem os ditos requisitos, que funcionam até às 4h da manhã, emitindo ruído e levando a inúmeras queixas de ruído por parte de moradores, as quais não são resolvidas pela CML).
Também a redacção do nº 2 do mesmo artigo 2 é ambígua no que toca à “actividade principal declarada”. Pretendendo a CML simplificar a vida aos operadores, acaba por criar para si própria um manancial de necessidades de classificação, sub-categorização e de acrescida fiscalização.
Relativamente ao funcionamento das esplanadas, nunca deveriam estas estar associadas ao horário dos estabelecimentos, pois como pode uma esplanada estar a funcionar até às 4h da manhã sem incomodar os moradores vizinhos?
Finalmente, a criação de um Conselho Consultivo prevista no Artigo 10º nunca conseguirá incluir as forças representativas de toda a cidade, passando a ser mais um órgão sem eficácia, que irá levar à diluição de responsabilidades.
C. CONCLUSÃO
A Câmara Municipal de Lisboa, órgão do Município cuja legitimidade decorre do voto dos lisboetas, deve regulamentar em conformidade com a Lei e a tutela dos interesses dos lisboetas.
A Câmara Municipal de Lisboa deve zelar pelos interesses dos moradores, garantindo que o seu direito ao descanso e tranquilidade estejam assegurados, como consagrado na Constituição e na lei.
Nas zonas habitacionais da cidade, a diversão nocturna deve estar em consonância com o direito dos moradores ao descanso, devendo a Câmara Municipal de Lisboa regulamentar no sentido de não permitir ruído na rua a partir das 23h como previsto na lei do ruído, o que passa pelo encerramento dos estabelecimentos do Grupo I até essa hora.
A Câmara deve regulamentar no sentido de não permitir que estabelecimentos alarguem a sua actividade para a via pública, i.e. as licenças são para os espaços interiores e esplanadas, quando é o caso, e estabelecimentos que não tenham capacidade para ter clientes no seu interior não podem ser licenciados. O licenciamento zero deve ser suspenso no centro histórico.
A Câmara deve regulamentar no sentido da restrição do consumo de álcool na via pública a partir das 23h até às 7h, a fim de proteger os moradores, procurando diminuir e não promover o consumo desregrado de álcool, causador de inúmeros problemas de saúde pública e ambientais.
A Câmara deve regulamentar no sentido de possibilitar um encerramento imediato do estabelecimento no caso de violação de regras. Exemplo: um estabelecimento que emite ruído para a rua a partir das 23h deverá poder ser encerrado imediatamente pelas autoridades policiais em caso de reclamações de moradores. O que acontece atualmente é os moradores queixarem-se já no limite do suportável as autoridades aparecerem (quando aparecem) ao fim de 1h a 2 horas, e ainda assim, o estabelecimento prevaricador não ser encerrado, representando para os moradores afectados uma noite perdida.
No seguimento do acima exposto, pronunciamo-nos contra a publicação do presente regulamento nos termos do projecto, e pedimos a regulamentação das medidas referidas, nomeadamente:
- nas zonas habitacionais, restrição de horários até às 23h para todas as actividades económicas que possam ser constitutivas de delito, garantindo que o direito ao descanso e tranquilidade dos cidadãos estejam assegurados, como consagrado na Constituição e na lei;
- restrição do consumo de álcool na via pública a partir das 23h;
- encerramento imediato do estabelecimento no caso de violação de regras, sem necessidade de medições acústicas sempre que o ruído seja audível a ouvido nu na rua e/ou nas casas dos queixosos;
- restrição da venda de álcool para a rua, não permitindo que estabelecimentos estendam a sua actividade para a via pública;
Sugere-se a criação de zonas de diversão nocturna em áreas exclusivamente não residenciais, as quais deverão ter um horário de encerramento a fim de não permitir uma actividade contínua e permanente, i.e. 24 horas por dia, que possa chocar com outras actividades diurnas de fruição do espaço público.